"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Borges I

O escritor argentino Jorge Luis Borges é um dos grandes gênios literários do mundo. Forma, junto com Guimarães Rosa e Garcia Marquez, a Santíssima Trindade da literatura sul-americana. Sempre me dediquei mais a seus maravilhosos contos e ensaios, mas recentemente ando encantado com o Borges poeta e compartilho com vocês algumas das que mais gosto.


Nosso

Amamos o que não conhecemos, o já perdido.
O bairro que já foi arredores
Os antigos que não nos decepcionaram mais
porque são mito e esplendor.
Os seis volumes de Schopenhauer que jamais terminamos de ler.
A saudade, não a leitura, da segunda parte do Quixote.
O oriente que, na verdade, não existe para o afegão, o persa ou o tártaro.
Os mais velhos com quem não conseguiríamos
conversar durante um quarto de hora.
As mutantes formas da memória, que está feita do esquecido.
Os idiomas que mal deciframos.
Um ou outro verso latino ou saxão que não é mais do que um hábito.
Os amigos que não podem faltar porque já morreram.
O ilimitado nome de Shakespeare.
A mulher que está a nosso lado e que é tão diversa.
O xadrez e a álgebra, que não sei.


Minha Vida Toda 

Aqui outra vez, os lábios memoráveis, coisa única - e semelhante a vós.
Persisti em me acercar do Bem - e fiquei íntimo das penas.
Atravessei o mar.
Conheci muitas terras; vi uma mulher e dois ou três homens.
Desejei uma moça altiva e branca e de quietude hispânica.
Vi um arrabalde infinito onde se consuma uma
insaciável imortalidade de crepúsculos.
Degustei inúmeras palavras.
Creio intensamente que isso é tudo o que não verei nem farei coisas novas.
Creio que meus dias e minhas noites
se igualam em pobreza e em riqueza àquelas de Deus
e às de todos os homens.


AFTERGLOW

O ocaso é sempre comovente
por mais pobre ou berrante que seja,
porém mais comovente ainda
é o fulgor desesperado e final
que enferruja a planície
quando o último sol mergulhou.
É doloroso manter essa luz tensa e diversa,
essa alucinação que impõe ao espaço
o medo unânime da sombra
e cessa de repente
quando notamos sua falsidade,
como cessam os sonhos
quando sabemos que sonhamos.


Ausência

Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornam vãos
e sem sentido, iguais
as luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderá a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.




Por Ricardo Pereira

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