"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

domingo, 15 de novembro de 2015

Um trem descarrilhado

Por que diabos guardamos cartas antigas? Os mais novos não saberão a que me refiro, trocam e-mails, mensagens, snaps, o que seja que não perdura. Eles não correrão o risco de encontrar por acaso, numa gaveta empoeirada, papéis levemente envelhecidos com a tinta da caneta escrita por mãos apaixonadas, magoadas, saudosas ou arrependidas.

Num domingo chuvoso e melancólico em que, a despeito de uma enorme carga de trabalho, sair da cama parece um sacrifício, ao finalmente tomar a decisão, procurar um texto repleto de anotações que me seriam preciosas para uma aula da semana, encontro um amontoado de cartas. Saco duas aleatoriamente, datadas com diferença de um ano e alguns meses e ponho-me a ler, já sabendo as possíveis consequências. Não é possível mexer com o passado e sair ileso. Não em um dia como hoje.

O disco da Iris DeMent consegue tornar tudo ainda mais patético – um brinde à música country por sentimentalizar qualquer momento, até o que não precisa de auxílio algum. As duas cartas flagram momentos absolutamente distintos. Na primeira, o encantamento por uma relação que só cresce e se fortifica com o tempo e as dificuldades, a narrativa de belos momentos vividos, a esperança-quase certeza de que com o tempo seria possível chegar a um patamar ainda maior e mais bonito e amor declarado com letras maiúsculas. A segunda carta é o oposto, há amor não declarado abertamente, há muita saudade e há, acima de tudo, a perplexidade em tentar entender como tudo aquilo chegou ao fim, como conseguir levar a vida sem a presença do outro (eu, mas hoje não mais o que sou, outro eu muito menos eu do que gostaria de ser sem saber se serei um dia capaz de ser mais eu sendo um pouco do eu que fui outrora). Há lágrima, vazio, ar parado, espaço ainda não preenchido.

A juventude é uma doença, li em algum lugar. As cartas datam de mais de dez anos, hoje sei o que poderia ser feito, o que deveria ter feito, o que ao menos precisaria ser tentado, mas o orgulho, a impaciência, a precipitação e a arrogância, sintomas dessa patologia juvenil não deixaram, não deixariam e nem deveriam. “Tudo tem um porquê, mas pra mim tardou demais, demorou demais” – canta a voz do disco que entra em sequência.

Guardamos as cartas, é óbvio, para acessar a saudade e também para lembrar que já fomos capazes de viver tanta beleza. “Ao avistar você, amor, eu soube que iria me perder” – será que meus discos, suas canções realmente conversam comigo, sabem o que se passa por aqui? Seria bonito pensar assim, mas não. Daqui a pouco serei lembrado que “o peso da decisão, da escolha definitiva cai sobre mim”, no entanto o tempo passou, gosto de pensar que venci o “desafio ao meu poder de cicatrização”, ainda que esse texto pareça dizer o contrário.

Seguindo com o álbum – Trovões a me atingir, Jair Naves –, sigo em busca de seguir em frente com o que tenho no presente, em busca “do bem maior”, com a certeza de que “a luta se faz valer por quem me amou e por quem eu amei”.

“Então fecha os meus olhos,
que o amor encubra o som do mundo a ruir."
Por Ricardo Pereira

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