"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Somos todos Balboa

Antes de qualquer coisa, duas pequenas histórias pessoais.

Quando entrei para a faculdade não sabia o que queria e, no decorrer do curso, criei a convicção de que não daria aula de maneira alguma. Terminei e fiquei um tempo como estagiário em uma biblioteca, ganhando o básico apenas para passar os dias. Quando surgiu uma oportunidade de lecionar, ganhando mais de quatro vezes do que recebia então. Comecei assim minha carreira de professor, sem convicção e extremamente despreparado. Fui inserido em uma realidade complicada, com alunos hostis e agressivos e a cada fim do dia pensava em desistir. Ouvi conselhos de professores mais experientes, procurei igreja, amigos e quem mais me ajudou foi Rocky Balboa. Assisti aos filmes em sequência em uma semana e fui ganhando forças e me tornando, na perseverança e determinação, um professor melhor.

Outra. Há uns dez anos, passando a virada de ano na casa de um casal de amigos que recebia uma série de pessoas. Devia ser dia 30 ou 31 de dezembro, as mulheres tentando arrumar a casa para a festa e os homens "tocando o terror", arrumando churrasco improvisado, trazendo caixas de cerveja, desorganizando tudo. Meu amigo Kito Vilela falou, "dou um jeito nisso". Colocou o DVD de um dos filmes do Rocky e, como mágica, todos os homens pararam o que estavam fazendo e se juntaram na sala para assistir, vibrando e se emocionando com o que assistíamos.

São passagens simples, mas que ilustram o poder e o carisma do personagem fascinante que é Rocky Balboa. E tal fascinação vem por um motivo antes de qualquer outro: humanidade. 

O primeiro filme, de 1976, é brilhante, um clássico. Rocky nos é apresentado como um sujeito comum, "preso à sua classe e a algumas roupas, indo de branco pela rua cinzenta". Melancolias... Sim, um dia a dia melancólico e cinzento de um cara ingênuo, ignorante, tentando sobreviver como consegue. Marginal entre marginais. E é esse típico "loser" o responsável por algumas das lições que provocam tamanho encantamento até hoje a tanta gente. O boxe é apenas metáfora para a vida. A importância do trabalho duro, da dor e da superação para se atingir os objetivos; o medo como combustível para seguir em frente; a confiança e a cumplicidade no amor; o reconhecimento de que nós somos nossos principais adversários e o fato de que a vitória pode, muitas vezes, não significar atingir o ponto mais alto do pódio são alguns dos eixos temáticos trabalhados nos Rockys.

Os volumes II e III também são ótimos filmes, continuam a desenvolver os temas acima citados e fazem crescer o encantamento com o personagem. As lutas são ainda mais bem filmadas, o esforço mais destacado e a trilha sonora é um caso a parte. "Gonna Fly Now" é um dos temas mais fortes, envolventes e reconhecíveis da história do cinema. Quando usadas no timing correto, emociona e com certeza fez muito moleque pular da cadeira do cinema de empolgação pelo mundo a fora.


"Pôr fogo em tudo, inclusive em mim".                                                                                                                            
Empolgado com o sucesso comercial, Stallone, com dois filmes pavorosos em sequência, quase consegue arruinar a grande figura construída nos três primeiro episódios. No quarto filme (sabe-se lá como, o de maior bilheteria entre os cinco primeiros), comete um terrível equívoco, transformar Rocky em super herói, tirando a vida e humanidade a que fiz referência anteriormente. Criou-se uma alegoria patética da Guerra Fria em formato de video clipe, sendo Rocky o representante norte-americano contra um quase-robô insensível russo. O discurso do protagonista no final do filme é de sentir vergonha assistindo. E o quinto volume, pior de toda a série, só apresenta um bom momento, a lembrança que Balboa tem de Mickey, seu antigo treinador, no abandonado ginásio em que costumava treinar. De resto, só assistimos pelo carinho que temos pelos personagens, pois todo o realismo melancólico do primeiro filme é transformado aqui em drama forçado e inverossímil.

A redenção veio em 2006, com o longa "Rocky Balboa", trinta anos após o lançamento do primeiro filme. Praticamente ignorando os dois anteriores, veio emocionante, "furando o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio". É meu preferido e se iguala em qualidade ao de 76, ao qual espelha de forma reverente em seu desenvolvimento. Aqui, junto aos temas trabalhados nos filmes iniciais, há, mais do que qualquer coisa, reflexões sobre envelhecer com nossas perdas, lembranças, fantasmas e demônios interiores. Se você não se emocionar com esse, pode desistir de seu coração.

Esta semana está estreiando o ótimo "Creed", spin-off da série, em que Rocky, coadjuvante do filho do lendário Apolo Creed (Michael B. Jordan, em excelente química com Stallone) aprofunda os temas da dificuldade de envelhecer, perder o viço, ganhar saudades e sentir, a cada dia um pouquinho, a proximidade do fim. Pode ser uma ótima oportunidade de apresentar Balboa a pequenos fãs, que até podem não notar nesse momento, mas à medida que o tempo for passando, vão perceber que, na realidade, estavam vibrando, divertindo-se e se emocionando ao contemplar a própria imagem num espelho.


Por Ricardo Pereira

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