"There's a fear I keep so deep / Knew it name since before I could speak (...) If some night I don't come home / Please don't think I've left you alone"- Keep The Car Running, Arcade Fire

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

A carta que não foi mandada

Não sei bem como começar essa correspondência, amiga, o que não deixa de ser desapontante e um bocadinho irônico, visto que, quando por perto, comunicávamo-nos muitas vezes sem precisar das palavras.

A vida tão curta, nós tão pequenos, que há uma ponta de vergonha de minha parte pela falta de esforço em estreitar os laços, sabendo que o tempo e a distância duramente tendem a distender o caráter diuturno de nossa harmoniosa identificação. Recentemente estive perto de sua casa e por orgulho e leve ressentimento besta não a procurei, ainda que sua proximidade fosse quase palpável, “presente na saudade”, como disse certa vez nosso querido Vinicius.

Não há e nunca haverá outro Vinicius, e como uma figura como ele faz falta nesses dias malucos que vivemos. Queria sentar com você num bar em Ipanema, Angra dos Reis ou na Ilha do Governador e passar horas lânguidas a compartilhar nossa misantropia, pequenas alegrias e infelicidades reais e imaginadas enquanto o mundo movimenta-se veloz ao nosso redor com estrépito e fervor indiferente à nossa dolente melancolia.

Como sinto falta de quando podíamos ter esse espaço em nossa rotina, toda semana, muitas vezes em dias consecutivos. O tempo, conforme já alertava Aldir, gira em volta de mim a judiar, passa sombrio e eu, realmente, não sei. O problema por aqui é não conseguir passar do meio da canção, fica a zombaria sem resposta.

Não sei quanto a você, há em mim uma dificuldade imensa em aceitar no que me transformei. O espelho bate forte, uma ilustração medonha, com a qual inicio uma luta, espero que não tardia, para amenizar as avarias, embora meu pessimismo me faça temer transformar em um incompreensível grande borrado, fruto de uma borracha já desgastada pelo uso e desleixo.

O que falaríamos nós, depois desses anos, de como o mundo se encontra? Política nunca foi tema assim tão presente em nossas conversas, mas inevitável que comentássemos a patética caricatura que a “direita” vem se tornando, se há perigo em seus, por enquanto, risíveis extremos. E no quanto a “esquerda” transformou-se no que mais temia, o que é ainda mais triste, pois o que um dia foi um fio de esperança converteu-se num rio asqueroso de podridão.

Gostaria de compartilhar e saber o que pensa sobre os exageros para expressar qualquer tipo de opinião; discutir o humor atual cada vez mais “limpinho” e babaca; o politicamente correto tomando as rédeas de qualquer discussão e tornando o mundo mais e mais sem graça; e saber de você, amiga, o que anda fazendo, pensando, sentindo, planejando, vivendo.

É carnaval e me sinto tão distante da euforia a que as pessoas se obrigam, pulando, cantando e sorrindo para fugir do desespero mal disfarçado de suas vidas cotidianas. Continuo recorrendo a novos e velhos discos, livros e filmes com o mesmo objetivo e, em outra ocasião, adoraria compartilhar com você quais deles mais vêm me despertando vida e admiração.

Por aqui sigo procurando, além das obras de arte, alguém com uma visão mais positiva ou mesmo que possua a mesma melancolia, mas que seja capaz de me resgatar das armadilhas as quais eu mesmo me impus. A verdade é que queria me sentir como homem como me sinto em minha vida profissional. (e, lembrando da época de faculdade, quem diria que um dia fosse proferir algo assim?)

Lá fora o sol brilha forte e a atmosfera dessa carta talvez passe uma impressão contrária, de tristeza e escuridão. Mas saiba que é fruto da saudade desse momento e, sim, de um ou outro incômodo recorrente. Continuo rindo e me divertindo com as mesmas bobagens de sempre, como fazíamos em nossos encontros mesmo em meio a nossas épocas mais turbulentas.

A ideia de escrever essa carta veio depois de escutar esse episódio do Pingue Pongue, programa de rádio em que Matilde e Tomás, em meio a incríveis canções, conversam sobre a arte e a vida, com a inspiração e intimidade com que outrora costumávamos fazer e que, espero, ainda possamos em algum momento. Ouça com carinho, acho que pode gostar.

Uma saideira,




muita saudade.

Ricardo Pereira  

Nenhum comentário:

Postar um comentário